O Direito à Desconexão do Trabalho no Contexto Brasileiro: Uma Análise Jurídica e Comparativa.

Thays Silva Gonçalves Martins[1]

Resumo

Este artigo discute o direito à desconexão no Brasil, abordando a influência da tecnologia e a emergente necessidade de regulamentação para proteger o tempo da vida privada dos trabalhadores, que engloba família, amigos, lazer, atividades sociais e descanso. A análise se estende à legislação internacional, com foco nas práticas da França e Itália, e explora o desenvolvimento do tema no contexto brasileiro através do Projeto de Lei 4.044/2020.

Palavras-chave:

Desconexão. Trabalho. Brasil. Comparativo. Perspectivas.

Abstract


This article examines the right to disconnect in Brazil, addressing the impact of technology and the emerging need for regulation to protect workers’ private life time, which includes family, friends, leisure, social activities, and rest. The analysis extends to international legislation, focusing on the practices in France and Italy, and explores the development of this topic in the Brazilian context through Bill 4.044/2020.

Keywords:
Disconnection. Work. Brazil. Comparative. Perspectives.

Introdução

A transformação digital introduziu a ultraconexão, Esse fenômeno é intensificado pela cultura de disponibilidade permanente, exacerbada pelos smartphones e pelo trabalho remoto. A longo prazo, a ultraconectividade pode levar ao esgotamento profissional (burnout), a redução da produtividade e problemas de saúde mental, um declínio na satisfação no trabalho e na qualidade de vida.

O uso de dispositivos tecnológicos aumenta significativamente a eficiência do trabalho, porém traz o desafio de manter os trabalhadores disponíveis fora de seus horários regulares de trabalho. Isso permite que o empregador contate os empregados durante o tempo destinado ao seu descanso, afetando especialmente aqueles envolvidos em atividades intelectuais.

Surge, assim, a discussão sobre a importância do direito à desconexão do trabalho, evidenciando a necessidade de políticas que promovam um equilíbrio saudável entre trabalho e descanso, protegendo o bem-estar dos trabalhadores.

A evolução nas formas de comunicação no ambiente laboral

A evolução do formato de trabalho no Brasil ao longo das décadas reflete a integração progressiva da tecnologia. Na década de 1970, com a expansão industrial, as práticas laborais eram predominantemente manuais e a comunicação era limitada a métodos tradicionais como telefone e correspondências. Nos anos 80 e 90, a chegada dos computadores pessoais e a internet começaram a transformar o ambiente de trabalho, aumentando a eficiência e a conectividade.

O início dos anos 2000 houve uma aceleração na adoção de tecnologias de informação, consolidando o uso do e-mail e da internet como ferramentas essenciais. Na última década, o surgimento de smartphones e a expansão da banda larga facilitaram a ultraconectividade e o trabalho remoto, trazendo novos desafios e oportunidades para o mercado de trabalho no Brasil, acentuando-se ainda mais com a pandemia da COVID-19.

Como consequência, foi consolidado o direito que encerrou o debate na esfera jurídica sobre o trabalho remoto, expandindo as modalidades de trabalho à distância. Contudo, não abordou de maneira específica certas restrições. Esse conceito de restrições refere-se à garantia legal de que todos os trabalhadores tenham o direito de dedicar o tempo fora do horário de trabalho a atividades de lazer, compromissos familiares ou outros interesses que não estejam vinculados às suas obrigações profissionais.

Da limitação de jornada à luz da Constituição e CLT

As leis do trabalho têm o objetivo de assegurar que os empregados desfrutem de um ambiente de trabalho apropriado, que preserve sua saúde física e mental, e que possibilitem a eles se desligarem das atividades laborais nos períodos de descanso.

Os limites da jornada de trabalho, os intervalos intra e interjornadas e o descanso semanal remunerado estão inseridos nas normas de ordem pública, protegidos pela Constituição Federal, em seu art. 7º (BRASIL, 1988), e pela CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 1943).

O art. 7º, incisos XIII e XXII da CRFB/88, estabelecem como direitos sociais:

XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

As mencionadas normas objetivam “garantir ao trabalhador o momento de descanso para repor suas energias físicas e mentais, e poder gozar dos meios de sociabilidades afetas a cada indivíduo” (CARDOSO, 2015), além de possibilitar o exercício do direito fundamental à conciliação da vida pessoal, familiar e laboral (SILVA, 2013).

A legislação trabalhista tem como finalidade proporcionar aos empregados um ambiente de trabalho que resguarde tanto a saúde física quanto a mental, garantindo que possam efetivamente se afastar das suas funções laborais durante os períodos de descanso.

Para o cenário atual, tem-se que a regulamentação dos direitos relativos à jornada laboral deve ser moldada de acordo com o contexto em que é implementada, refletindo as transformações nas relações de trabalho e buscando a eficácia das normas de proteção.

Neste panorama de mudanças, o direito à desconexão laboral se insere como uma adaptação das normas jurídicas que regem o controle da jornada de trabalho na era digital. Essa adaptação visa garantir a plena eficácia desses direitos fundamentais, assegurando que os trabalhadores possam se afastar das exigências do trabalho fora do horário estabelecido.

Do Direto à desconexão do trabalho no Brasil

O fundamento do direito à desconexão se apoia nos princípios que orientam a aplicação do Direito do Trabalho no Brasil. Esses princípios buscam proteger o trabalhador contra o desequilíbrio de poder econômico do empregador, garantindo condições justas de trabalho e a manutenção da saúde e bem-estar do empregado, visto que “à constatação fática da diferenciação social, econômica e política entre os sujeitos da relação justrabalhista” (DELGADO, 2017).

Na esfera da jurisprudência trabalhista, a ausência de uma legislação específica que formalize o direito à desconexão leva à necessidade de recorrer a outros dispositivos legais para garantir o direito ao descanso adequado e o controle apropriado da jornada de trabalho.

Ressalta-se que a não observância do direito à desconexão pode resultar em várias consequências jurídicas, dependendo do uso dos dispositivos digitais. Essas consequências variam se os dispositivos são usados para manter o empregado em um estado de prontidão, aguardando chamadas para trabalho; se são para a execução de tarefas fora do ambiente de trabalho; ou se servem para transmitir informações relacionadas ao trabalho, mantendo o empregado perpetuamente conectado.

A violação contínua do direito à desconexão, caracterizando-se a jornada exaustiva pela interrupção constante dos períodos de descanso do empregado, pode caracterizar o dano moral, em razão do cotidiano de trabalho expor à potencialidade de trabalhar durante o período destinado ao descanso (GÓIS, 2015), caso em que surge o dever do empregador de indenizar aquele que sobre o qual a lesão foi praticada por sucessivas vezes, principalmente quando se configura como jornada exaustiva.

O entendimento encontra amparo nos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), pois “quando as horas extras se tornam ordinárias, deixa-se o campo da normalidade normativa para se adentrar o campo da ilegalidade” (SOUTO MAIOR, 2003), por se tratar de conduta patronal que viola o direito aos intervalos e descansos previstos na legislação trabalhista.

O art. 187 do Código Civil (BRASIL, 2002), trata do abuso de direito, considerando ato ilícito aquele que ocorre quando o titular de um direito o exerce de maneira a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Na seara da duração do trabalho, o ordenamento jurídico confere ao empregador o direito de exigir do empregado o labor além do limite de oito horas diárias, limitada a duas. Porém, trata-se de horas de trabalho extraordinário que, se tornado habitual, constitui abuso de direito, eis que a limitação de jornada é norma de ordem pública. (PONZILACQUA, 2022).

O uso dos equipamentos tecnológicos que caracterizam uma extensão de jornada, e por assim dizer, uma jornada exaustiva, conduz ao chamado dano existencial, onde, uma vez que reprime o empregado de dispor livremente de seu descanso.

Este referido dano, o existencial, não se concretiza apenas pela prestação do trabalho em si, mas pelo abuso do empregador, em realizar contato com o empregado nos momentos em que deve gozar de seu tempo livre, para deixá-lo ciente de questões relativas ao trabalho, ou promover cobranças. Ou seja, qualquer contato que afete o seu tempo de desconexão ao trabalho.

Constata-se, portanto, que a garantia do direito à desconexão do trabalho no Brasil, na ausência de uma legislação explícita sobre o tema, advém de uma interpretação conjunta dos dispositivos constitucionais que protegem o trabalho, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida privada, entre outros.

Uma vez reconhecido o direito à desconexão no ordenamento jurídico nacional, torna-se viável demandar judicialmente a sua observância ou solicitar reparação por sua violação. As medidas judiciais aplicáveis podem ser de natureza individual ou coletiva.

É fundamental reconhecer que o trabalho não deve ser considerado a única atividade definidora da vida do trabalhador. Deve-se promover um equilíbrio entre o trabalho e outras atividades, como lazer, vida familiar e cuidados com a saúde. A desconexão do trabalho é indispensável para o bem-estar físico e mental. “Quando o trabalhador não consegue se desconectar do trabalho, ele pode desenvolver problemas como estresse, ansiedade, burnout, depressão, entre outros”. (BARROS, 2017)

Uma comparação com a lei francesa

A Lei de Desconexão ao Trabalho na França foi introduzida pela Lei nº 2016-1088, de 8 de agosto de 2016, também conhecida como “Loi Travail” ou “Lei El Khomri” (FRANÇA, 2016), em referência à Ministra do Trabalho Myriam El Khomri, que a propôs. Esta legislação foi implementada como parte de uma reforma trabalhista mais ampla, visando modernizar o mercado de trabalho francês e adaptar-se às mudanças tecnológicas e sociais que impactam as relações de trabalho.

A Lei francesa estabelece que empresas com mais de 50 empregados devem negociar, com os representantes sindicais, os termos e condições de uso dos dispositivos digitais para garantir o respeito ao tempo de descanso e às férias dos trabalhadores. Na ausência de um acordo, a empresa deve criar uma carta, em consulta com os trabalhadores, que defina e regule o uso dessas ferramentas fora do horário de trabalho.

A mencionada Lei é vista como uma medida progressista que responde às necessidades dos trabalhadores na era digital. No entanto, alguns desafios persistem, especialmente em setores onde a disponibilidade constante é considerada essencial.

Um dos aspectos notáveis é o foco na prevenção do “burnout” e outros problemas de saúde relacionados ao excesso de trabalho. A legislação francesa promove uma cultura de trabalho mais equilibrada, onde o tempo livre é respeitado e valorizado.

Enquanto a legislação francesa já está em vigor e possui um conjunto detalhado de normas e procedimentos para sua implementação, o projeto brasileiro ainda enfrenta debates e ajustes antes de sua possível aprovação. A proposta brasileira inspira-se na experiência francesa, mas também busca adaptar-se às especificidades do mercado de trabalho local, que possui suas próprias dinâmicas e desafios. A experiência francesa oferece valiosos insights para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de legislações similares em outros países, incluindo o Brasil, onde a necessidade de regulamentação do direito à desconexão é cada vez mais reconhecida.

O projeto de Lei no Brasil

Acerca da regulamentação da desconexão ao trabalho no Brasil, há um projeto de Lei – Projeto de Lei 4.044/2020 (SENADO FEDERAL), de autoria do Senador Fabiano Contarato, que tramita no Senado Federal.

Este projeto visa estabelecer regras claras sobre o direito à desconexão para evitar o excesso de trabalho e proteger o tempo de descanso dos empregados. Este projeto inclui disposições que impedem o empregador de solicitar a atenção de empregados fora do horário de trabalho, exceto em casos de força maior.

Além disso, durante as férias, o empregado deverá ser removido de grupos de mensagens de trabalho e aplicativos profissionais em seus dispositivos pessoais.

O projeto também pretende alterar a CLT para regulamentar melhor os regimes de plantão e sobreaviso no trabalho à distância, adaptando-se às novas realidades do trabalho remoto.

As perspectivas para a aprovação ou rejeição do Projeto de Lei 4.044/2020 podem ser influenciadas por vários fatores, incluindo o contexto político, a pressão de grupos de interesse, como associações empresariais e sindicatos, e o clima social em relação ao trabalho remoto e ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

A tendência global é crescente em reconhecer e legislar o direito à desconexão, como visto em países como França e Espanha. Isso pode influenciar positivamente a decisão dos legisladores brasileiros. Por outro lado, poderá haver uma grande resistência e oposição pelo setor empresarial, devido às possíveis restrições operacionais e custos adicionais relacionados ao pagamento de horas extras e reestruturação das práticas de comunicação empresarial.

Conclusão

No Brasil, a ausência de uma legislação específica que trate do direito à desconexão do trabalho leva a uma interpretação baseada nos princípios constitucionais e nas normas da CLT.

A necessidade de uma regulamentação mais explícita é evidente, pois a falta de diretrizes claras pode resultar em abusos, onde empregadores mantêm empregados perpetuamente conectados, comprometendo seu tempo de descanso e lazer.

O Projeto de Lei 4.044/2020, em tramitação no Senado Federal, propõe-se a preencher essa lacuna, trazendo à tona a urgência de adaptar a legislação trabalhista às novas realidades do trabalho remoto e da conectividade digital.

A legislação francesa serve como um exemplo inspirador, demonstrando que é possível equilibrar as necessidades dos empregadores com os direitos fundamentais dos empregados, promovendo um ambiente de trabalho mais equilibrado e saudável.

Referências bibliográficas

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SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. Flexibilização da jornada de trabalho e a violação do direito à saúde do trabalhador: uma análise comparativa dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol. São Paulo: LTr, 2013.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 23, Campinas, SP, jul./dez. 2003.


[1] Advogada especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Campus Itajaí. E-mail: thays@goncalvesmartins.com.br